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ÍCARO LIRA – NÁUFRAGO

Bernardo Mosqueira

 

(ao meu amor)

 

Haverá sempre a metáfora da constelação. Quando olhamos para o céu e reconhecemos, no manto da noite, um conjunto de estrelas nomeado por sua forma, construímos sentido único pra astros de tempos e lugares muito diferentes. Uma é menor, mais nova e mais próxima. A outra é maior, mais antiga e mais distante. Uma outra, de repente, nem está mais lá: já não existe há muitos anos, e ainda vemos sua luz. Juntando os pontos luminosos no plano do desenho, damos a elas sentido único. O artista é esse, portanto: o organizador das multiplicidades que busca e organiza, por suas razões, elementos no tempo e espaço. Seu grande talento é a capacidade de navegar e traduzir os interesses.

 

Ícaro Lira apresenta, aqui, o resultado do projeto "Náufrago", realizado durante residência no litoral sul do Rio Grande do Sul como parte do projeto VETOR, ligado ao Atelier Subterrânea. Porém, o que presenciamos aqui é mais do que a mostra de objetos coletados, filmes-diários, cadernos-livros, instalações e fotografias. As pinturas medievais ou renascentistas, representando cidades em perspectiva, inventaram um olho que não existia antes. Era a visão do homem-deus que, antes, só Ícaro (o ser mitológico) alcançara. Com a queda de Ícaro, a morte de Deus e a falência do Homem, é, novamente, pisando o chão que nos lançamos na busca por verdade. O que presenciamos aqui é Ícaro (Lira) nos propondo uma forma de olhar, nos apresentando uma maneira específica de investigar e nos envolvendo no questionamento sobre a relação entre homem e terra.

 

Percebemos a tensão entre o que é interno e externo. Em presença, o fotografado é vivo para o fotógrafo. Na fotografia, o fotógrafo, presumido por trás da câmera, é vivo para o público. É  nesse encontro entre os dois e nas causas do interesse de registrar, transportar e exibir que surge o afeto do trabalho. Fora e dentro como domínio e destino - e vice-versa.

Ícaro diz que gostaria de ficar sozinho, que tem vontade de silêncio, que carrega livro sobre os campos de concentração no Ceará, que deseja entender os movimentos migratórios, que migra pra descolar, que deseja estar na fronteira, que tem dificuldade de comunicação, que não entende minhas perguntas. Edição, montagem, colagem, exposição. “Corre um menino/por entre os séculos.//Corre um menino/solto, sozinho,/na madrugada/de um país claro.// Assim te vejo/até agora/ náufrago límpido/e solitário.”*. Perceba o encontro entre as palavras e as imagens. “Pequenas conchas/estão nascendo/para escutarem/tua paisagem.”*.  Entre o “vamos juntos” e o “preferia não”.

 

Há algo da prática de um cronista no posicionamento de Ícaro. A organização das propostas por assuntos, a composição livre e o tom de coisa sem necessidade, associados à prática diária, a um processo humanizado e à pertinência, tomam profundidade negando a monumentalidade e a espetacularização. A leveza e a simplicidade formais indicam a superficialidade dada às coisas explanadas e oferece, com aparência de banal, a seriedade de uma proposta de experiência e reflexão. Somos afetados sem floreios grandiloquentes. A ação, que, por vezes, tem tom de pretensa gratuidade, dá, ao público, a sensação da necessidade de ação: seja para entender a gênese do que se apresenta, seja pra resolver a equação que se recebe. Utilizando processos simples de anotação, registro e deslocamento, o artista provoca uma tensão plena em ambiguidade, poesia e estranhamento para assinalar intensamente sua função muito além da informativa. O processo criativo do trabalho se confunde com o viver do artista-cronista. Selecionando, deslocando e arranjando pedaços do que é vida, o resultado se assemelha e se afasta do mundo.

 

Essas insólitas substituições são gestos de genealogia antiartística que cria mistério sobre algo apresentado não pela aura singular gerada pelo gesto à mão em sua construção, mas sim pela presença do objeto (es)colhido no dado contexto. Quando nos deparamos com alguns dos objetos e registros de “Desterro”, questionamos seus motivos e, nesse percurso da dúvida, encontramos o compromisso ético e a função política da arte. Percebemo-nos ainda a vivenciar nossa destruição com prazer estético. Percebemos a necessidade de, como público, agir criativamente.

 

Os objetos criados se instalam na superfície da terra, sempre, para atender a necessidades primárias dos homens: comer, residir, se deslocar, ter consigo objetos úteis. Todo tipo de estrutura ou instrumento é, em si, resultado de muitas camadas das historias geológica, social e pessoal. As paisagens habitadas pelo homem trazem as marcas de suas técnicas e nos fazem perguntas. Os lugares são tempos empilhados, enigmas que esperam perguntas mais do que respostas. Ícaro, com seus processos de viagem-coleta-deslocamento-arranjo-exposição, responde com perguntas, instaurando um tipo de corporeidade, um estado do corpo, que nasce de uma temporalidade própria que vai contra a espetacularização e a naturalização. As pessoas são os lugares onde estão. Às vezes, carregam consigo os lugares de onde vieram, às vezes se transformam nos lugares em que chegam, às vezes os dois. Nos rastros dessa investigação sobre a relação entre o homem e a terra, alteramos valores, exercitamos um novo olhar, conhecemos um novo corpo, nos encontramos como motores necessários e percebemos que, na procura do que procuramos, encontramos movimento.

 

*Cecília Meireles

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